-Eu tive esse sonho. Ele parecia tão real que fiquei impressionado.
-Bem ou mal?
-Mal
-Então conta logo…
-Como criar curiosidade, basta um tempero de coisas ruins, não?
-Ah fala logo, não cria celeumas…
-Eu estava vivendo no futuro… os smartphones eram super interativos, a inteligencia artificial neles era incrível e bastava estar rodeado de pessoas que eles pipocavam as ultimas ações delas nas redes sociais. Nada muito diferente do que temos hoje, fotos incríveis, bons momentos sendo postados, sorrisos por todo lado, as curtidas não eram mais somente um like, mas tinham uma classificação. Poderiam ser de um a cinco corações de gostei ou o mesmo para um “meia boca” com aquele smile que olha pra cima com a boca arqueada para baixo. Smile que não smile, sabe?
-Algo como o quanto gostou, não só gostou o não gostou, é isso?
-Isso… E assim todos tinham um rating social que os faziam importantes, ou medianos e até mesmo sem importância. Como se ali estivesse o valor da cada um frente ao circulo de relacionamento que podiam alcançar. Uma espécie de validação via rede social. E isso influenciava até nas relações comerciais e profissionais. Se não tivesse um bom rating seu trabalho poderia estar em risco, você não conseguia descontos em compras e serviços… Valia até para aplicações de bootcamps e universidades. Sem um bom rating, nada feito.
-Nossa, que viagem… valia mais que sua experiência, ou competências? Que louco isso!
-Pensando bem, não achei tão estranho.
-Como não? A pessoa vale pelo que ela é, não pelo que parece ser… nesse modelo do sonho ela vale mais pelo modo como consegue impressionar os outros do que pelo que ela pode desempenhar ou mesmo como ela é de verdade num relacionamento olho no olho. Basta saber quais os gatilhos mentais acionar.
-Mas estamos falando de autenticidade, certo? De ser autentico, expressar o que gosta, o que não gosta, o que é bom, o que ainda falta desenvolver e até alguns defeitos e fraquezas que sabemos existirem, mas é ridículo expor… Estou certo?
-Está, mas onde quer chegar?
-No ponto que já fazemos isso de um modo socialmente aceito, mas que não está explícito, apenas subentendido.
-Me conta mais do sonho. A conversa está muito café filosófico…
-Eu estava angustiado, meu rating era bom, eu sentia que tinha potencial para chegar no máximo se me esforçasse. Mas cada vez que eu era autentico e expunha alguma coisa mais pessoal, qualquer coisa que não tivesse alguma conexão social padrão, que não envolvesse um sorriso, ou algo desejado pelas pessoas era o caos. Ou ninguém se interessava, ou recebia rating negativo. Algo do tipo… aquele smile atravessado me dizendo: cara, sério isso? Não seja um porre, porra! Não quero saber disso.
-Então tinha uma regra subentendida do que era legal postar e o que não era, ou o que incomodava os outros?
-Isso… O supra sumo da conformidade! Não existia um caderno de regras, mas havia uma percepção muito clara do que era socialmente admirado por todos e coisas que eram comumente rejeitadas, e tudo que pudesse ser diferente estava numa zona cinzenta. E esta zona era o suficiente para chutar o balde do teu rating e te causar prejuízos reais ali. Imagina postar uma posição pessoal que não estivesse no streaming “happy mode”? Não havia uma só alma que tivesse coragem de postar o quanto estava triste e arrasado pela morte de alguém, precisava escrever um discurso positivo e dizer o quanto a morte te ensinou a ser forte, enfrentar a vida com coragem e blah blah blah… Mostrar fraqueza? humm, fora do streaming. Deu aro, bateu na trave, tocou na rede depois de cravar a bola antes da linha de três? Você está fora do jogo!
-Então não era um sonho, era pesadelo…
-Hehehe, de fato, me senti mal como disse…
-Será que chegaremos nesse ponto?
-Não me provoca, já falei que estamos quase lá atualmente e pra você o café já se encheu de filosofia…
-Hahahaha, tá bom, coloca mais açúcar então… Vamos falar disso.
– Muito difícil alguém se expor de verdade, estamos numa competição, os resultados falam mais alto, não importa como chegou, se foi com mérito ou sem, se foi sorte, lugar certo na hora certa, benefícios de uma boa rede de contatos, de berço, amigos com caneta na mão, nada importa, o que vale é o resultado. Nisso temos a cultura da programação neurolinguística, da inteligência emocional em ação. Somente os mais aptos e preparados podem colher vantagens, então mostrar fraqueza ou qualquer nível de ignorância sobre como ser positivo sempre, em qualquer aspecto, te leva ao limbo social. Numa perspectiva ampla, sim, precisamos colher algum resultado, é uma forma decente de valorar nossa evolução, mas existe um gap poderoso na forma, de como usamos os resultados, de como eles são validados.
-O que quer me dizer é que se faz o certo de maneira errada?
-Não seria tão taxativo, mas estamos no caminho disso.
-Me de um exemplo por favor.
-Vamos falar de algo prático que é realizado numa contratação profissional. O primeiro filtro é um currículo, uma foto, uma imagem do profissional em que ele tenta se expressar sinteticamente. Boa parte tenta vigorosamente ampliar a visão que se pode obter sobre si num papel. Uma pessoa com todos os seus processos de pensamento, habilidades de persuasão e de relacionamento interpessoal, perfil comportamental e mais uma lista de habilidades, só tem os seus resultados como prova. Já existe uma lacuna aí. Quem ele é hoje e quais resultados pode conseguir daqui pra frente? Não se sabe, apenas se infere pelo passado, e se já não tem muitos resultados o profissional é descartado em favor de outro com mais peso no seu passado. Não importa se ele está pronto para decolar, ele deveria ter decolado antes. Já se perde um potencial nisso. A segunda questão é o quanto os rótulos de peso, aqueles que se diferenciam pelo senso comum. A regra é que o profissional que estudou em Harvard tem mais valor que o que fez USP. São inferências relevantes, tem magnitude. Mas o que vemos no dia a dia são alguns sucessos esplendidos e alguns fracassos retumbantes, ou seja, a regra tem suas exceções e elas não são poucas. Entram então algumas explicações como fit cultural, perfil comportamental e mais medidas similares para ajudar na margem de erro. Entrevistas são feitas com pessoas especializadas nestas análises, e por mais que ajudem, ainda não se resolveu a questão. Mas existe uma resolução? Eu acredito que podemos mitigar os fracassos, mas não existe um modelo que resolva na raiz, ninguém é um diploma na parede, nem um currículo na pasta. Mais adiante, os relacionamentos pessoais também sofrem da mesma lacuna. não existe uma forma de definir o parceiro ideal, estamos sempre em mutação, inconstantes e insatisfeitos. Somos uma miscelânea de sonhos e objetivos conflitantes, o que nos faz diferentes a cada período de tempo conforme evoluímos. Vemos os índices de separações crescer, mais pessoas querendo ser sozinhas… mas voltando ao profissional, vemos uma juventude entrando no mercado de trabalho cada vez mais confortável no seu próprio job rotation. Não tem muita lealdade ao poder de uma marca ou ao peso de um faturamento, eles são mais leais aos seus próprios valores.
-Isso ultrapassa o limite da cafeína por aqui… Temos um bom whiskey para acompanhar o pensamento?
-Jack Gentil?
-Of course!
-Preciso me agachar e minha lombar não ajuda… mas tem algo aqui…
-Hahaha não quero ouvir suas fraquezas, elas me enjoam. O que importa é o que vai trazer a mesa.
-Pois está mais certo do que pensa.
-Em que sentido?
-Vou lhe contar a história do Jack Daniels.
-Agora tem minha total atenção.
-Aprende-se muito como se formam os rótulos, e depois como a verdadeira história que se passa nos bastidores pode incrementar ainda mais o valor de algo que já se admira. Essa história a seguir pode ser a história da vida como ela ocorre hoje. Sentado?
-Com os ouvidos ligados e a boca sedenta… Pode servir por gentileza.
-O principal criador do Jack Daniels foi na verdade Nathan Green, um escravo que ajudou Daniel a desenvolver seus conhecimentos de destilaria quando Green ainda escravo trabalhou junto com Daniel para Dan Call. Após o fim da escravidão Green foi trabalhar com Daniel e teve a responsabilidade de ser o destilador mestre. Daniel nunca possuiu escravos e sempre falou abertamente sobre a importância de Nathan Green, mas isso nunca havia sido divulgado dessa forma. A história oficial remetia apenas a Daniel, mas isso mudou quando a verdadeira história foi revelada recentemente por uma mulher que lera sobre Nearest, na verdade Nathan, Green que havia ensinado Daniel a destilar enquanto ela estava de férias em Cingapura. Fawn Weaver, seu nome, ficou curiosa com a notícia, era escritora afro-americana e seu interesse pelo assunto a levou entrar fundo nisso quando em 2106 a empresa dona da destilaria, a Brown-Forman havia declarado que finalmente iria abraçar o legado de Nathan Green e enfatizar seu papel. Ela quis ver isso de perto, e foi para Lynchburg, Tennessee, a pequena cidade de pouco mais de 6 mil habitantes onde fica a Jack Daniel´s. Lá fez uma extensa pesquisa e passou a saber mais da história da destilaria do que a própria empresa. Quando apresentou tudo a Mark McCallum head da destilaria, ele ficou estupefato, Green era o primeiro mestre destilador negro da história americana. E Daniel era então o segundo mestre destilador da Jack Daniels… Incrível não?
-Nossa, realmente incrível. Ainda mais saber que Daniel nunca escondeu o papel do Green nisso, mas que de alguma forma esqueceram dele, afinal deveria ser conveniente não ter um ex-escravo como símbolo da destilaria…
-Isso, ela declarou que os atuais gestores não tinham total domínio desses fatos, e quando ela apresentou toda a documentação e revelou a verdadeira história eles abraçaram a mesma e resolveram atualizar toda sua estrutura turística e os registros de sua linha do tempo dando a Green seu devido papel, não como coadjuvante, mas como protagonista. Eu acho que tudo isso veio no tempo certo, onde as pessoas estão mais conscientes e o preconceito está perdendo força. Essa história incrível só vem mostrar que existe muito mais por trás de um belo rótulo do que o marketing que o envolve. Muito do que ela descobriu em documentação veio através da tradição oral dos descendentes de Green, muitos dos quais ainda trabalham na destilaria.
-Isso me faz pensar… Que impacto teria a destilaria se sua história fosse relacionada ao Green desde o começo. Será que teria alcançado todo esse sucesso numa época que o racismo era muito forte?
-Nunca saberemos. Mas o que aprendemos é que existe muito talento desprezado por convenções sociais nem sempre inteligentes. depois de tanto tempo se está devolvendo o valor a quem mereceu de fato, sem desprezar a capacidade de Daniel de empreender. No resultado temos um belo whsiky para apreciar, mas existiu um gap enorme na valoração desse resultado que agora começa a ser recalculado devidamente. No final a história se resume num ganha ganha para todos, por mais cruel que tenha sido assim por muito tempo. A destilaria consegue resgatar seu passado, Green ganha seu devido reconhecimento e o público passa a admirar ainda mais todo o resultado dessa saga.
-Agora posso dizer deste Gentleman, que ele é ainda mais saboroso do que antes, pois o apreciarei junto com essa história toda. Nada pode ser mais interessante depois de ouvir isso, cria um clima que dá um up sensorial completo em cada gole.
-Mas não se esqueça que a história toda é muito interessante, mas a contei para me ajudar a ilustrar que um conceito sobre algo pode ser ótimo, mas sempre contem uma parcela ilusória a qual não percebemos, e essa não percepção pode ser revelada ou não. Essa imponderabilidade é que faz com que tudo que conhecemos pode ser questionado até que se tenha maior domínio sobre o que consumimos como verdades.
-Essa relativização incomoda. Afinal é muito mais confortável definir o que é certo, o que é bom em oposição ao que não é ou o que é errado. Essa fundamentação do que nos serve e do que não nos serve é um dos fundamentos de nossas escolhas, de nossas decisões. Viver nessa relatividade só causaria mais incertezas e menos ação. Não me parece saudável por mais que seja justo faze-lo.
-Sim, tomamos milhares de decisões todos os dias, algumas sem perceber, o que nos economiza energia. A tendencia é criar um padrão e segui-lo, mais assertivo, e adaptado a nos poupar e nos direcionar. A conformidade, e ela implica em possuir conhecimento passado, experiencias vividas, pode ser tanto uma boa solução quanto uma ilusão.
-Está me dizendo que vivemos nos baseando em premissas erradas ou que as experiencias não nos servem como parâmetro?
-Não chega a tanto, apenas que seria ideal perceber quando um conceito é real ou vendido como tal, ou ter a capacidade de perceber a diferença entre uma experiencia que nos serve como referencia ou apenas vai nos fazer desperdiçar potencial de acerto. Quantas vezes um empresário ouviu que aquilo não daria certo, porque já foi tentado várias vezes e sempre deu errado, mas ele insistiu e deu certo? Ou que aquele relacionamento fracassaria e ele prosperou? Se tudo que já aconteceu na história da humanidade fosse regra, não haveriam regras. Ainda assim sempre tentamos criar um padrão, uma frase ou um postulado sobre algo, e vivemos desperdiçando chances por temer insistir em fazer diferente, e se por acaso fracassarmos? Quem tem coragem de parecer o idiota da vez até que prove estar certo? Isso é um crime contra a inovação, contra a criatividade, contra outros valores importantes que temos como humanos, o inconformismo, o espirito empreendedor, o desejo de se destacar, de se provar capaz. Bom, tem mais histórias para contar, mas acho que por hoje já temos o bastante.
-Sem dúvida! Talvez se nos prolongássemos você fosse me falar sobre o papel do storytelling para as marcas, ou fazer novas conexões entre paradigmas antigos e os disruptivos que vemos acossar a velha industria e seus mastodontes em extinção… Pensar que no fundo eu vim apenas para ver o amigo e tomar um café para saber as novidades.
-Essa parte, o meu sonho não vai conseguir extinguir, as relações humanas vão sofrer com as redes sociais, mas a velocidade das mudanças e do conhecimento vai acabar trazendo de volta o consumo de nicho mesmo num mercado global de fácil acesso. Algumas idas e vindas de comportamentos sociais serão estressadas, mas a tendencia é reumanizar as relações pessoais e de consumo. Eu acredito que voltaremos a ter mais conexões reais do que virtuais em algum momento do futuro.
-Tudo bem, mas vamos deixar para depois, quando a informação é muita acabamos por perder conhecimento. Por ora me contento em poder desfrutar deste Gentleman, presencialmente, aqui contigo.
-Cheers!